A desindustrialização brasileira em debate

Uma das questões mais instigantes no debate econômico brasileiro refere-se à existência ou não de um processo de redução da participação relativa da indústria na economia. Essa suposta desindustrialização estaria sendo causada pela valorização do câmbio em momentos como o que se seguiu ao Plano Real e, chegando aos dias de hoje, o período iniciado com a superação das crises macroeconômicas do início desta década (a partir de 2002). O segundo elemento da suposta ameaça ao setor industrial brasileiro é o avanço da China nos mercados globais de manufaturas, impulsionado pelos baixos salários e pela política de manutenção do yuan em nível muito desvalorizado.

Essa discussão não é simples. Mesmo sob a ótica dos que advogam a tese da desindustrialização, há o reconhecimento de que não existe nenhum processo avassalador desse tipo em curso, mas, apenas, indícios a partir da experiência histórica de mais longo prazo. É sabido também que a produção industrial brasileira tem apresentado desempenho bastante satisfatório, acompanhando as oscilações do PIB, e demonstra muito vigor em fases, como a atual, de recuperação da atividade econômica. Por conta disso, há, do outro lado deste debate, aqueles que não acreditam em “ameaças” significativas ao setor industrial.

Histórico
Quando se olham os dados de mais longo prazo nota-se, grosso modo, que a parcela da produção da Indústria de Transformação no PIB brasileiro saiu de 20%, em 1947, para um pico de 36%, em 1985, quando medida a preços correntes. A partir daí, com várias oscilações, caiu para algo em torno de 16% do PIB, em 2008. Como se vê, uma primeira imagem que se tem é de perda de participação da indústria.

Um exame mais detalhado dessa trajetória, porém, mostrará que grandes quedas da fatia do produto industrial no produto, como em 1990 e 1995, correspondem a momentos em que houve mudanças de metodologia no cálculo do PIB. Uma correção dessas quedas sugere que foram menores do que se pensava. Além disso, em outras ocasiões, a redução de participação deveu-se à forte instabilidade experimentada pela economia brasileira entre 1994 e 2002. Como a produção industrial tende a desacelerar mais do que o PIB em recessões — e a crescer mais em recuperações —, períodos caracterizados por predominância de crises macroeconômicas implicam redução do peso da indústria na atividade econômica agregada. E há ainda a abertura comercial de 1990 a 1992, praticada em um contexto de recessão doméstica, que também parece ter provocado um impacto significativo no mesmo sentido.

A análise do emprego na Indústria de Transformação como parcela da população ocupada, porém, mostra outro resultado. Há, na verdade, um aumento relativo do emprego industrial, que passa de 12,8% do total, em 1992 (ano de recessão), para 14,4%, em 2008, tomando como base a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). Isso é confirmado pelos resultados das Pesquisas Industriais Anuais (PIA) do IBGE: o emprego industrial reportado pelas empresas aumentou de 7,44% da população ocupada total, em 1996, para 8,35%, em 2008.

Em relação à evolução do investimento fixo, também não há evidência de desindustrialização no período mais recente. Entre 1996 e 2008, houve um forte aumento, de 14,4% para 18,5%, da participação do investimento na Indústria de Transformação na formação bruta de capital fixo total (FBCF).

De qualquer forma, como se viu acima, não há dúvida de que a indústria encolheu a partir de meados da década de 1980, relativamente aos outros setores. Quando a conta é feita a preços constantes, como parece mais correto, o processo de redução começa antes, na segunda metade dos anos 1970, e é menos agudo.

Para entender o que aconteceu com a indústria nacional, uma primeira linha de abordagem seria a de observar à evolução da participação do setor em uma ótica internacional. Dessa forma, seria possível chegar-se a um diagnóstico que levasse em conta as transformações estruturais da economia contemporânea em uma perspectiva de longo prazo.

Experiência internacional
Tomando-se um grupo de 185 países, de 1970 a 2007 (no qual, para 156 deles, existem dados para todos os anos do período), é possível compor um panorama global da participação da indústria no PIB. Um primeiro resultado que chama atenção é a queda mundial, em termos relativos, do produto industrial, que saiu de 25% do PIB mundial, em 1970, no conjunto dos países, para pouco menos de 17%, em 2007.

Na análise de 16 países semelhantes ao Brasil, nota-se que a produção industrial brasileira era particularmente alta na média do período de 1970 a 1972, atingindo 25,3% do PIB, o que é 4,9 pontos percentuais superior à média do grupo. No conjunto desses países, a média brasileira é a segunda maior em 1970/72, sendo superada apenas pela da Argentina, com 30,3%.

Acompanhando a tendência global, quase todas essas 16 economias experimentaram uma redução relativa da indústria no PIB entre o início dos anos 1970 e a média do período 2005/07. O grupo como um todo teve uma diminuição de 5,8 pontos percentuais na participação da indústria, enquanto o Brasil, que saiu de um nível mais elevado, recuou 9,6 pontos porcentuais. Em 2005/07, a média brasileira, de 15,7%, ainda estava 1,1 ponto porcentual acima da média do grupo. O que se nota, portanto, é que o Brasil parece ter sido “sobreindustrializado” no início dos anos 1970, na comparação com os seus pares, tendência que diminuiu bastante três décadas e meia depois, quando o País ficou mais próximo da norma internacional.

Com base nos dados dos 185 países, e dada à relação existente entre renda per capita e indústria, Bonelli e Pessoa (2010) indicam que uma economia com as características da brasileira teria uma parcela industrial do PIB substancialmente abaixo da que de fato existiu entre 1970 e 1975. Já no período de 2001 a 2007, a fatia industrial do Brasil estaria apenas ligeiramente acima do que prevê o exercício.

Essa análise sugere que, em todos os momentos entre 1970 e o início da década de 1990, a Indústria de Transformação manteve uma participação no PIB acima da prevista pelo exercício proposto por Bonelli e Pessoa. Em outras palavras, nesses períodos, o desvio do Brasil em relação à norma internacional foi maior do que desvios positivos semelhantes de praticamente 90% dos países da amostra. O auge dessa tendência ocorreu entre 1982 e 1987, quando apenas 5% dos países tinham desvios superiores ao apresentado pelo Brasil.

A partir de 1994, a mudança é profunda, e o Brasil se situa mais próximo à norma que caracteriza o conjunto de países. No período 1994/2000, pouco mais de 50% dos países parecem mais industrializados do que o Brasil, em relação ao que a regressão determinaria para as suas características socioeconômicas e tecnológicas. Na etapa 2001/07, pouco menos de 50% dos países têm aquela característica. Nesses dois últimos períodos, portanto, o Brasil revela-se aproximadamente no centro da amostra — isto é, o número de países que parecem mais industrializados (em relação ao nível determinado pela análise estatística) é aproximadamente igual ao dos países menos industrializados.

A se levar em conta esse estudo, portanto, a resposta à questão sobre a desindustrialização no Brasil é que, em termos relativos, ela não existe. O resultado sugere que, nos anos 1970 e 1980, provavelmente em razão do aprofundamento da política de substituição de importações, o Brasil tornou-se “sobre-industrializado” em relação ao que seria de se esperar de um país com as nossas características socioeconômicas, tecnológicas e de dotação de fatores de produção à época. E, a partir da década de 1990, houve um retorno ao que seria a “normalidade” industrial, com base em parâmetros internacionais.

Momento atual
Fica faltando, porém, detectar o que está acontecendo “na margem”, isto é, a tendência mais recente em termos de produção e competitividade industrial. E, nesse contexto, é preciso avaliar também se, num período bem mais próximo do presente, a pujança da China no comércio internacional de manufaturas não começou a se fazer sentir no desempenho da indústria brasileira.

O Brasil está entrando numa fase de déficits em conta corrente que deve perdurar por vários anos, segundo projeções de diversos analistas econômicos. Depois de fechar 2008 e 2009 com déficits de 1,72% e 1,54%, respectivamente, do PIB, o país vê a tendência acelerar-se em 2010. Assim, o déficit em conta corrente de janeiro a junho de 2010 atingiu a marca de 2,47% do PIB, aproximadamente o dobro do resultado negativo de 1,26% registrado em igual período de 2009.

Na presença de déficits externos em alta, e com a valorização do câmbio que permite o financiamento internacional desse excesso de consumo e investimento, é natural que ressurjam preocupações sobre o impacto da moeda forte no setor industrial. Assim, se até 2008 não havia evidência de desindustrialização no Brasil, será que a valorização adicional da moeda nos dois últimos anos, associada ao “efeito China”, pode ter sido a gota d’água para deslanchar aquele processo indesejável?

Quando se analisa o desempenho do comércio exterior de 2008 até hoje, verifica-se que há uma semelhança bastante forte entre a trajetória de diversas variáveis em 2010 e em 2008. Já em 2009, que absorveu o maior impacto da crise global, o desempenho tende a ser bem diferente.

Os dados apontam, porém, que, depois do ano atípico de 2009, o comércio exterior de manufaturados do Brasil não retornou, como a maior parte dos outros indicadores, ao padrão de 2008, o que é preocupante. Como se sabe, a China reagiu à crise mantendo o nível do seu câmbio nominal, tanto no momento inicial de desvalorização das moedas em geral em relação ao dólar, quanto na subsequente reapreciação. À medida que os efeitos da turbulência foram se dissipando, processo particularmente rápido no mundo emergente, as moedas desses países — e, especialmente a daqueles, como o Brasil, que se beneficiam da alta das commoditidies — valorizaram-se ante o dólar, e, consequentemente, diante do yuan.

Por outro lado, com a retração do consumo nos países ricos, cujo tecido econômico foi danificado de forma mais duradoura pela crise, a China tende naturalmente a voltar suas baterias exportadoras para países emergentes. Em alguns desses mercados, como os da América Latina, os produtos manufaturados chineses entram em competição direta com os brasileiros, que têm nos países da sua própria região alguns de seus principais clientes. Além disso, os bens industriais exportados pela China também concorrem com a produção brasileira de manufaturas para o mercado doméstico. Esses fatores estão por trás da “primarização” da pauta de exportações do Brasil, embora, aparentemente, ainda não haja “primarização” equivalente na produção doméstica.

Mesmo que seja cedo para um diagnóstico definitivo, o comportamento divergente das manufaturas no comércio exterior brasileiro no período pós-crise chama atenção, e merece estudo mais aprofundado. Seria prematuro decretar que o Brasil sofre de desindustrialização. Essa é uma preocupação antiga, e os dados, até pelo menos 2008, não a corroboram. Por outro lado, no período mais recente, e, especialmente, na saída da turbulência global, há sinais novos de possível perda de competitividade industrial. Não se trata de uma sangria desatada, e reações precipitadas — especialmente no sentido de alterar o regime macroeconômico e o cambial — seriam certamente equivocadas. Mas parece ser o momento de examinar o problema de forma mais rigorosa.

Fonte: FGV

Nenhum comentário:

Postar um comentário